O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes autorizou no último dia 29 de março que o governo federal descumpra algumas regras previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) – Lei Complementar n° 101/2002 e na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para realizar atos emergenciais no combate ao coronavirus.
O ministro acolheu pedido em Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pela Advocacia Geral da União (AGU), de flexibilização de quatro artigos da LRF e da lei orçamentária e concedeu liminar para, “durante a emergência em saúde pública de importância nacional e o estado de calamidade pública decorrente de covid-19, afastar a exigência de demonstração de adequação e compensação orçamentárias em relação à criação/expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento do contexto de calamidade gerado pela disseminação de covid-19”.
Na decisão, o ministro afirmou que a pandemia exige medidas governamentais rápidas, autorizando que o governo seja dispensado de apontar a fonte dos recursos para cobrir as despesas relacionadas a estes gastos específicos.
O principal objetivo da Lei de Responsabilidade Fiscal, de acordo com o caput do art. 1º, consiste em estabelecer “normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal”. Por sua vez, o parágrafo primeiro desse mesmo artigo procura definir o que se entende como “responsabilidade na gestão fiscal”, estabelecendo os seguintes parâmetros:
– ação planejada e transparente;
– prevenção de riscos e correção de desvios que afetem o equilíbrio das contas públicas; – – garantia de equilíbrio nas contas, via cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas, com limites e condições para a renúncia de receita e a geração de despesas com pessoal, seguridade, dívida, operações de crédito, concessão de garantia e inscrição em restos a pagar.
Diversos pontos da LRF enfatizam a ação planejada e transparente na administração pública. Ação planejada nada mais é do que aquela baseada em planos previamente traçados e, no caso do serviço público, sujeitos à apreciação e aprovação da instância legislativa, garantindo-lhes a necessária legitimidade.
O artigo 15 da LRF estabelece que “serão consideradas não autorizadas, irregulares e lesivas ao patrimônio público a geração de despesa ou assunção de obrigação que não atendam o disposto nos arts. 16 e 17.” E os artigos mencionados estabelecem que despesas obrigatórias de caráter continuado (ou seja, aquelas para investimentos em programas e políticas públicas) só podem ser feitas se o governo seguir as seguintes exigências:
– ter estimativas de impacto financeiro e orçamentário, tanto no ano em que a despesa entra em vigor quanto nos dois anos seguintes;
– estar de acordo com o Plano Plurianual e a Lei de Diretrizes Orçamentárias;
– ter seus efeitos financeiros compensados nos anos seguintes pelo aumento de receita ou redução de despesa.
Significa dizer, dentre outros pontos, que a LRF exige que a execução de despesas deve ser precedida da verificação de previsão da receita respectiva, através da inclusão nas competentes leis orçamentárias. Esta disciplina do gasto público exige que o projeto seja incluído na lei orçamentária anual, assim como a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais, na forma do art. 167, I e 11 da CF, que já dispõe:
“Art. 167 – são vedados: I – o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual; II – a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais.”
Observa-se que a lei tem por objetivo sedimentar o regime de gestão fiscal responsável, constituindo um código de conduta gerencial a ser observado na condução da coisa pública. Traça limites, estabelece controle e oferece elementos legalizadores acerca dos gastos públicos, bem como sobre o fluxo de recursos financeiros necessários à sua efetiva realização.
Com a ocorrência da pandemia do Covid19, em 18/03 o governo federal solicitou à Câmara dos Deputados o reconhecimento de estado de calamidade pública com efeitos até 31 de dezembro de 2020, “com as consequentes dispensas do atingimento dos resultados fiscais previstos no art. 2º da Lei nº 13.898, de 11 de novembro de 2019, e da limitação de empenho de que trata o art. 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal”, o que foi aprovado na mesma data.
A necessidade de reconhecimento formal pelo Poder Legislativo do ato ou demanda do Poder Executivo de decretação de estado de calamidade pública decorre do princípio da democracia fiscal, pelo qual os representantes do povo são chamados a autorizar a adoção de um regime de exceção na aplicação das normas gerais e regulares constantes da Lei de Responsabilidade Fiscal.
A decretação do estado de calamidade pública por si só já autoriza a realização de gastos em regime de exceção, conforme artigo 65 da LRF, que dispõe sobre a suspensão de prazos para comprovação de gastos com pessoal, bem como a dispensa de atingimento dos resultados fiscais e a limitação de empenho prevista no art. 9o da lei.
Porém, visando resguardar a celeridade e autonomia necessárias nesta situação, a AGU ajuizou a ação para interpretação mais extensiva da norma.
Isso porque, segundo o governo, as medidas de estímulo à economia e ao emprego a serem tomadas para fazer frente à crise do coronavírus irão provocar gastos públicos além dos já previstos nas leis orçamentárias, o que pode fazer com que o governo descumpra as regras da LRF e da LDO se não houver o entendimento de que as exigências não valem para estes gastos específicos.
Em geral, a LC101 exige a elaboração e obediência a orçamentos objetivos, o respeito às metas fiscais, a compensação orçamentária (novos gastos devem ser justificados e vir de fontes correlatas de financiamento) e o equilíbrio entre receitas e despesas, tudo com foco em médio e longo prazo, de modo que um governo não prejudique as finanças públicas e repasse as consequências ao governo seguinte.
Para que o governo seja dispensado de apontar a fonte dos recursos para cobrir as despesas, era necessário que o STF fixasse uma interpretação específica para artigos da LRF e da LDO 2020.
Na decisão que concedeu a liminar, o ministro destacou que afastar esses artigos “não conflita com a prudência fiscal e o equilíbrio orçamentário”, porque, argumenta, não serão feitos gastos baseados em “propostas legislativas indefinidas, caracterizadas pelo oportunismo político, inconsequência, desaviso ou improviso nas finanças públicas, mas, sim, gastos orçamentários destinados à proteção da vida, saúde e da própria subsistência dos brasileiros afetados por essa gravíssima situação”.
Assim espera-se que ocorra, não sendo dispensada, mas sobretudo essencial a fiscalização rígida dos órgãos de controle.