Cinemateca Brasileira – Patrimônio histórico e a defesa dos bens culturais

Nos últimos meses, a sociedade vem acompanhando a novela envolvendo a Cinemateca Brasileira, instituição cultural que guarda valiosíssimo patrimônio histórico audiovisual brasileiro.  Poderia ser classificada como gênero comédia pastelão pelas ações de alguns personagens centrais da trama, porém o que se assiste não é uma ficção, mas uma realidade das mais dramáticas.

Não é recente a crise pela qual a Cinemateca vem passando. A agrura financeira da Cinemateca começou em 2013, quando a então ministra da Cultura, Marta Suplicy, suspendeu a transferência de recursos à Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC), OSCIP que geria a instituição, em razão de irregularidades apontadas pela Controladoria Geral da União. A instituição chegou a ficar meses sem diretor, atividades foram paralisadas e o número de funcionários reduzido.

Após a rescisão do termo de parceria com a SAC, a Cinemateca vem sendo administrada por organizações sociais não necessariamente contratadas pelo extinto Ministério da Cultura, como a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), que mantinha parcerias com o Ministério da Ciência e Tecnologia.

Desde 2018 a entidade é gerida pela Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (ACERP), selecionada em chamamento público realizado em 2016 pelo extinto MINC. Embora vencedora do certame, verificou-se que a ACERP não poderia ser contratada porque já possuía outro contrato de gestão firmado com a União, através do Ministério da Educação. Em razão disso, a União firmou com a ACERP um termo aditivo ao aludido contrato de gestão já existente com prazo de vigência até 2021.

Porém, não obstante as vontades convergentes das partes envolvidas, em 2019 a União decidiu não renovar o contrato de gestão com a ACERP, estando a Cinemateca, portanto, desde 31.12.2019 sem administração, seja diretamente, pelo governo federal, seja por outra instituição privada.

A Secretaria da Cultura deve à ACERP mais de R$ 11 milhões relativos a serviços prestados em 2019 e 2020. Sem esse dinheiro, a associação bancou os custos da Cinemateca com dinheiro próprio até abril de 2020. Desde então, os cerca de 300 funcionários da entidade audiovisual não recebem mais salário e, sem recursos para manutenção, seu acervo está em risco de dano irreparável.

Ainda que se possa questionar a validade do aditivo firmado com a ACERP, que muito se assemelha a um drible à legislação federal proibitiva de dois contratos concomitantes com a mesma entidade, ou ainda que se entenda incabível a vigência do aditivo após o término do contrato principal, nenhum destes aspectos justifica a inação do governo federal e o verdadeiro abandono da Cinemateca.

Há permissivos legais para que se prorroguem contratos em hipóteses de  emergência, como também validando a contratação de nova entidade sem prévio chamamento em tais situações.

Qualquer que seja a saída jurídica que se dê, a União deve assumir a responsabilidade pela manutenção e preservação do acervo da Cinemateca, e também do imóvel que a abriga, cujos edifícios, aliás, foram tombados pelo CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo) e pelo CONPRESP (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade).

Não bastasse, há notícia de que o governo federal pretende transferir a sede da instituição para Brasília, o que não é permitido pelo instrumento de doação que transferiu o acervo cinematográfico para a Administração Direta, cuja condição de validade é a de que a Cinemateca permaneça na cidade de São Paulo, dentre outros encargos.

Todos esses fatos levaram o Ministério Público Federal a propor, no dia 15 de julho, uma Ação Civil Pública contra a União, requerendo, em síntese, a tutela provisória para garantir a reestruturação, manutenção e empoderamento do Conselho Consultivo da Cinemateca, a renovação do contrato de gestão com a ACERP, o repasse orçamentário que originariamente já estava previsto e alocado para a execução do contrato de gestão para o ano de 2020, no valor de R$ 12.266.969,00, em favor da ACERP, a vedação à União de resilição unilateral do contrato de gestão sem prévia oportunidade de manifestação do Conselho Consultivo e sem autorização do juízo, e também a que a União seja condenada a apresentar ao juízo, seis meses antes do final da vigência do novo contrato de gestão com a ACERP, plano de atribuição razoável da gestão da Cinemateca.

O pedido inclui também a permanência do corpo técnico especializado que trabalha na entidade ou, no mínimo, a transmissão de seu conhecimento, mediante cursos de capacitação para os eventuais novos funcionários ou período de convivência laboral.

A urgência da ordem judicialé agravada diante da comprovada aceleração da degradação do acervo e do perigo real de

novo incêndio na Cinemateca.

Enquanto não é proferida decisão judicial, a Secretaria Especial da Cultura anunciou que vai criar um departamento exclusivo para gerir a Cinemateca, com abertura de chamamento público visando a seleção de organização social para administrar apenas serviços especializados e pontuais, além da formalização de 19 contratos emergenciais.

Todas essas providências emergenciais, adotadas por força de enorme pressão da classe artística, da mídia e da ação judicial mencionada, não seriam necessárias se a Administração Pública Federal tivesse assumido sua responsabilidade constitucional de salvaguarda do patrimônio cultural.

Compartilhando trecho da petição inicial, alertamos para a relevância da Cinemateca, cujo “acervo patrimonial histórico-cultural detém valor incalculável, englobando bens corpóreos (o maior acervo audiovisual-cinematográfico da América do Sul, formado por cerca de 250 mil rolos de filmes e mais de um milhão de documentos relacionados ao cinema, como fotos, roteiros, cartazes e livros, entre outros) e incorpóreos (além do conteúdo informacional dos referidos documentos, a Cinemateca concentra em seu âmbito uma longa tradição de trabalho técnico altamente especializado, que pode ser facilmente desmobilizado e dissipado, acaso não adequadamente tutelado;”

A importância da cultura e a preservação de sua diversidade foi reconhecida pela Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural aprovada pela UNESCO, em 2 de novembro de 2001. A ideia principal contida no texto da Convenção da UNESCO é a de que toda nação civilizada, comprometida minimamente com certos padrões de dignidade humana, desenvolvimento e justiça social não pode se furtar ao amparo, reconhecimento e preservação de sua cultura.

Além da mencionada Convenção da UNESCO, outros tratados internacionais de direitos culturais foram firmados e ratificados pelo Brasil para proteção do patrimônio cultural imaterial e a promoção da diversidade cultural.

A Constituição Federal, em seu artigo 216, conferiu ao patrimônio cultural o tratamento devido, assegurando proteção legal abrangente de bens de natureza material e imaterial, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Também o artigo 215 assegura que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.” Diversas leis infraconstitucionais também asseguram tais direitos.

Observe-se que o texto constitucional é claro quanto à valoração jurídica do patrimônio cultural, impondo à Administração Pública uma política de preservação que garanta aos cidadãos o direito à cultura.

Percebeu o constituinte que o cerceamento do acesso às fontes culturais ocasiona verdadeira lacuna existencial de consequências incalculáveis para a formação das pessoas, impedidas de se relacionar com o legado do patrimônio cultural da nação a que pertencem.

A preservação do patrimônio cultural não se apresenta na atual conjuntura como uma alternativa, mas sim uma imposição de natureza político-administrativa. Neste caso, não há discricionariedade administrativa quanto à implementação da política de preservação do patrimônio cultural, já que se trata de dever da Administração, ato vinculado que é.

O patrimônio cultural, em razão do valor universal que encerra, é de interesse de toda a humanidade e, embora vinculado à soberania dos Estados onde estão localizados, compete a cada país proteger, conservar, valorizar e legar às gerações futuras o acervo patrimonial cultural situado em seu território.

Finaliza-se este texto com a rigorosa e precisa advertência contida na referida Ação Civil Pública:

 “E assim se impõe à Administração Pública Direta Federal, enquanto a “Cinemateca Brasileira” integrar o patrimônio público histórico-cultural brasileiro, por força das leis federais citadas nesta petição – gostem delas ou não os mandatários de ocasião, por força do princípio constitucional da legalidade (art. 37, caput, da CR/88), tais leis lhes regem as condutas administrativas enquanto

vigorarem; e não lhes é legítimo nem a afronta direta, nem a indireta

(burla) às leis. Por isso, demonstra-se inconstitucional e ilegal a conduta da União de estrangulamento financeiro (e verdadeiro  abandono) da “Cinemateca Brasileira”, a qual está desprovida da imprescindível conservação e zeladoria, e impedida de dar continuidade ao serviço público que sempre prestou.”