De acordo com o § 4º do art. 68 da Lei de Direitos Autorais – Lei Federal nº 9.610/1998 – previamente à realização da execução pública de obras musicais, o usuário – expressão aqui entendida como o responsável pela realização do evento – deve apresentar ao ECAD a comprovação dos recolhimentos relativos aos direitos autorais, competindo à referida entidade, em caso de descumprimento dessa obrigação, buscar a arrecadação nos moldes do art. 99 do mesmo diploma legal, em juízo ou fora dele.
A regra vale também para eventos realizados pela Administração Pública, já tendo o Superior Tribunal de Justiça assentado o entendimento de que é possível a cobrança de direitos autorais na hipótese de execução de obras musicais em eventos realizados por entes públicos, independentemente da existência de fins lucrativos. Ou seja, a eventual gratuidade do evento não exclui a cobrança de direitos autorais, a qual não mais está condicionada à auferição de lucro direto ou indireto pelo ente promotor.
Afastada a precedente polêmica, outra questão que vem sendo levantada em hipóteses de eventos promovidos por entes púbicos, é sobre quem recai a responsabilidade pelo recolhimento dos valores devidos ao ECAD, quando tais eventos são realizados por empresas contratadas mediante licitação para essa finalidade.
O Superior Tribunal de Justiça, a partir do julgamento do Resp 1.444.957/MG, em 09/08/2016, tem se orientado no sentido da impossibilidade de se responsabilizar o ente público pelo pagamento de direitos autorais nos casos em que tiverem sido contratadas empresas para a realização de eventos públicos, diante do que dispõe o artigo 71, § 1° da Lei Federal 8.666/93:
“Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.
§ 1º A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis.
De acordo com o STJ, alinhando-se com decisão do Supremo Tribunal Federal proferida em ação de declaração de constitucionalidade do referido artigo 71 da Lei de Licitações, (ADC nº 16/DF), a norma citada, conquanto examinada pela Corte Suprema apenas quanto aos encargos trabalhistas, também veda a transferência à Administração Pública da responsabilidade pelo pagamento dos encargos comerciais.
A esse respeito, o acórdão cita Lucas Rocha Furtado para afirmar que a expressão “encargos comerciais” deve ser interpretada da forma mais ampla possível, abrangendo todos os custos para a execução do contrato:
“(…) quando a Administração contrata e paga a empresa ou o profissional para o fornecimento de bens, para a prestação de serviços ou para a execução de obras, ela transfere ao contratado toda e qualquer responsabilidade pelos encargos decorrentes da execução do contrato.
Ao ser apresentada a proposta pelo licitante, ele, portanto, irá fazer incluir em seu preço todos os encargos, de toda e qualquer natureza.
Desse modo, quando o poder público paga ao contratado o valor da remuneração pela execução de sua parte na avença, todos os encargos assumidos pelo contratado estão sendo remunerados. Não cabe, portanto, querer responsabilizar a Administração, por exemplo, pelos encargos assumidos
pelo contratado junto aos seus fornecedores. Para que não houvesse qualquer dúvida quanto à impossibilidade de a Administração Pública ser responsabilizada pelos encargos decorrentes da execução dos contratos administrativos, o legislador fez inserir o mencionado art. 71 da Lei nº 8.666/93”
A única exceção está expressamente prevista no § 2º do art. 71, segundo o qual a Administração Pública responde solidariamente com o contratado pelos encargos previdenciáriosresultantes da execução do contrato. Fora dessa específica hipótese, não há falar em responsabilidade solidária.
O STJ enfrenta ainda o cotejo da norma contida no artigo 71 da Lei 8.666/93 com o disposto no artigo 110 da Lei n.º 9.610/1998, que estabelece:
“Art. 110. Pela violação de direitos autorais nos espetáculos e audições públicas, realizados nos locais ou estabelecimentos a que alude o art. 68, seus proprietários, diretores, gerentes, empresários e arrendatários respondem solidariamente com os organizadores dos espetáculos.”
Tem-se reconhecido a preponderância das regras contidas na Lei nº 8.666/1993 quando em conflito com a Lei de Direitos Autorais, com fundamento no princípio da supremacia do interesse público, especialmente para se garantir os fins almejados no processo licitatório.
Nesse sentido, o acórdão do STJ pondera que “o critério da hierarquia não se mostra adequado à solução da controvérsia, porque ambas são leis ordinárias, tampouco o da especialidade, segundo o qual a norma especial prevalece sobre a geral, visto que ambas as normas são especiais, cada qual no seu âmbito de incidência, ora garantindo o direito particular do autor, ora protegendo o interesse público.
Na espécie, afigura-se mais pertinente valer-se dos princípios aplicáveis à Administração Pública, entre os quais o da supremacia do interesse público sobre o privado, notadamente para garantir que os fins almejados no processo licitatório – isonomia entre os concorrentes e seleção da proposta mais vantajosa – sejam atingidos, conforme salientado anteriormente.”
Conclui o Tribunal, desse modo, que a responsabilidade pelo pagamento dos direitos autorais na hipótese de execução de obra musical em evento realizado por empresa contratada para esse fim não pode ser transferida para a Administração, salvo se comprovada a ação culposa desta última quanto ao dever de fiscalizar o cumprimento dos contratos públicos (culpa in eligendo ou in vigilando), conforme decidido no julgamento da ADC nº 16/DF.
Tal entendimento tem sido referendado reiteradamente pelo STJ, conforme se verifica nos seguintes precedentes: REsp 1603042, Relator Ministro MARCO BUZZI, Publicação 28/08/2017; REsp 1562361, Relator Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Publicação 27/10/2017; AREsp 444058, Relator Ministro LÁZARO GUIMARÃES (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Publicação: 13/03/2018.
Apesar da fundamentação clara e assertiva do STJ, alguns tribunais estaduais ainda julgam em sentido oposto, como se vê em acórdãos recentes do Tribunal de Justiça de São Paulo, a exemplo da Apelação Civel 1000684-18.2018.8.26.0505, do Relator Salles Rossi, julgado em 29/04/2021 pela 8ª Câmara de Direito Privado, e do Agravo de Instrumento 2134672-81.2018.8.26.0000, do Relator Camargo Pereira, julgado em 13/11/2018 pela 3ª Câmara de Direito Público.
Ainda que os acórdãos mencionados venham a ser reformados em sede de recurso ao STJ, a sugestão que se faz é que os entes públicos exerçam a devida fiscalização dos contratos, fazendo constar nos respectivos termos a responsabilidade do contratado pelo pagamento dos direitos autorais e também a apresentação da prévia autorização, a fim de evitar sua responsabilização por omissão culposa em cumprir os termos da Lei n° 9.610/98.