A Expansão das lives e o pagamento de direitos autorais

Impulsionados pela demanda de bens culturais durante o período prolongado de isolamento decorrente da pandemia de coronavirus, os shows e demais programas de entretenimento realizados nas plataformas digitais como Youtube, Facebook e Instagram assumiram grandes proporções.

As lives vieram como alternativa à impossibilidade de realização de shows presenciais e tem resultado em bom retorno aos artistas, seja como forma de manter vivas suas imagens, seja financeiramente, o que trouxe à discussão as novas formas de uso e de remuneração relativas aos direitos autorais.

A Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98) estabelece que depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como execuções públicas (artigo 29).

Prescreve também o artigo 68 da LDA, que “sem prévia e expressa autorização do autor ou titular, não poderão ser utilizadas obras teatrais, composições musicais ou lítero-musicais e fonogramas, em representações e execuções públicas”.

No mundo analógico, não há dúvida quanto à aplicação desses dispositivos legais. Também em relação aos shows realizados ao vivo não se discute a necessidade de prévia autorização dos titulares para a utilização de suas obras, além do valor devido pela execução pública.

Porém, no contexto digital, para o qual não há previsão legal, até porque a LDA é de 1998, debates sobre a natureza jurídica dos eventos musicais realizados em plataformas digitais são frequentemente travados pelos diversos protagonistas, como as gravadoras, as editoras, o Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), os autores e os produtores.

Há quem argumente que a Lei 9.610/98, ao tratar da necessidade de autorização do titular para a utilização de obras musicais em locais de frequência coletiva, não teria considerado as formas remotas de transmissão.

Porém, a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Resp 1.559.264/RJ, em 2017, ao tratar dos streamings, deixou claro que, do ponto de vista legal, o uso das obras autorais na internet não difere em absolutamente nada da sua exploração por outros meios, como rádio e TV. Mais ainda: as plataformas digitais são consideradas locais de frequência coletiva e, portanto, o uso de músicas nesse ambiente é uma forma de execução pública, sujeita a todas as regras normais da Lei de Direitos Autorais.

Não é incomum que shows de DJs no Facebook ou no Instagram sejam derrubados sem qualquer aviso prévio quando utilizadas gravações de terceiros sem a autorização das gravadoras.

Apesar da indignação dos DJs, que inclusive lançaram a campanha “Let the DJs Play”, fato é que as gravadoras firmaram convênio com as plataformas para identificar quando há o uso de um fonograma sem autorização o que, em ocorrendo, acarreta a exclusão imediata da transmissão. Não cabe, neste breve texto, a discussão sobre a incidência de direitos autorais sobre obras como remixes, mashups e outras técnicas de mixagem, o que será feito em outro artigo.

A decisão do STJ deixou ainda explícito que, por se tratar de execução pública, a transmissão via internet das obras musicais, no caso, o streaming, implica na possibilidade de cobrança de direitos autorais pelo ECAD.

A realização de uma live transmitida por plataforma digital, por absoluta semelhança ao streaming, também é considerada uma forma de execução pública, devendo ser observada a legislação de direitos autorais.

O ECAD já possui contratos com as principais plataformas de streaming, como YouTube e Facebook/Instagram, autorizando a execução das músicas nas lives. Para a identificação, as plataformas devem enviar relatórios de uso das músicas ao ECAD, que processa e realiza a distribuição dos valores para compositores e artistas por meio das associações de música.

Porém, em razão do crescimento das lives durante o isolamento, muitas marcas passaram a patrociná-las, o que significou um aumento do rendimento financeiro às empresas, não previsível à época em que os contratos foram firmados.

Em vista deste fato novo, segundo as associações de autores, as lives – que nada mais são do que um show ao vivo transmitido pela plataforma – assumiram nova relevância que não poderia ter sido contemplada pelo contrato, o que determinou a necessidade de renegociação dos ajustes.

Assentado que deve haver a cobrança de direitos autorais sobre as obras executadas nas lives, o debate passou a ser quanto à forma de repartição dos royalties entre o ECAD, as gravadoras e as editoras, essas últimas representadas pela UBEM – União Brasileira de Editoras Musicais.

Essa pauta também vem sendo objeto de discussão em muitos países pelo ineditismo da circunstância causada pela pandemia, porém, como o Brasil é o país com maior número de lives, havia a necessidade de fixação de regras com urgência.

O Youtube alegava que já paga ao ECAD os valores de execuções públicas, porém, ficou claro que o valor obtido com os patrocínios iam direto para os produtores, sem passar pela plataforma. Alega o ECAD que, nos casos das lives patrocinadas, a cobrança não é dupla, pois há dois fatos geradores distintos decorrentes da exploração econômica das obras musicais, cabendo às plataformas e às marcas patrocinadoras/promotores realizar o pagamento.

Vale lembrar que o ECAD e a UBEM representam duas modalidades de direitos autorais distintas. Ao Ecad cabe cobrar o direito de execução pública musical presente nas lives, enquanto os editores associados da UBEM cobram pela exibição de obras musicais quando ligadas a marcas, serviços ou produtos em ações publicitárias.

Após várias reuniões, chegou-se a um critério de cobrança, que deverá ser aplicado aos produtores retroativamente a março até dezembro de 2020, nos seguintes termos:

  1. o ECAD reduzirá sua remuneração, de 7,5% para 5% da renda bruta, percentual relativo à execução pública, quando a live tiver patrocínio, até 30 de dezembro. Após essa data, voltará a ser aplicado o percentual previsto em seu regulamento.
  2. Quando a live for realizada sem patrocínio não haverá a cobrança, e será concedido desconto de 50% para as lives beneficentes ou com verba apenas para produção e montagem.
  3. os editores associados à UBEM reduzem sua retribuição para 5%, percentual relativo à receita de publicidade ou ações publicitárias obtidas com cada live, quando houver patrocínio de alguma marca.
  4. Importante desde já destacar que a gratuidade para o público não afasta, por si só, a aplicação da legislação de direitos autorais e nem a configuração do ato como execução pública. Nesse sentido, é interessante destacar os precedentes relacionados aos festejos populares de rua, como carnaval e festa junina. Já há muito tempo o STJ considera que os titulares dos direitos autorais e conexos devem ser remunerados pelo uso de suas obras nesses casos, mesmo não havendo cobrança de ingressos.

Nesse cenário, há quem trace panorama pessimista em decorrência das novas cobranças incidentes sobre os eventos, já tão minguados. Penso, entretanto, que as novas modalidades de geração de cultura estão irremediavelmente direcionadas ao formato digital, ainda mesmo quando os espetáculos presenciais voltem a acontecer, o que significará uma opção a mais para os produtores. Podemos projetar com facilidade a realização de um espetáculo em alguma casa de shows, com cobrança de ingressos, sendo transmitida simultaneamente em plataforma digital, com patrocínio de empresas. Poderá haver dupla rentabilidade.

É preciso sempre ressaltar a importância de prestigiar, respeitar e remunerar a classe artística musical, que tem tido seu trabalho utilizado pelas plataformas, patrocinadores, promotores e público por meio das lives, e que tanto tem contribuído para amenizar a angústia nos tempos difíceis de isolamento.